"Ver não é uma prioridade"

Cátia Lima, 21 anos, é cega de nascença. Após várias tentativas de tratamento foi-lhe diagnosticada uma deformação nos olhos que a impede de ver para o resto da vida. A utilização de dispositivos técnicos que possibilitem a visão deixa-a hesitante. Aprendeu a viver com a sua deficiência e há riscos que, como explica, não está disposta a correr.

 

Poder ver é um sonho que gostasse de realizar?
Ver não é uma prioridade.

 

Porquê?
(hesita) Quando era mais pequena fui influenciada por toda a gente, que me dava a ideia de que o maior desejo de uma pessoa cega é querer ver e, na altura, queria de facto. Depois, comecei a pensar pela minha própria cabeça sobre as coisas... Mesmo que me oferecessem essa possibilidade iria hesitar.

 

Que razões a levariam a hesitar?
Uma pessoa cega que passe a ver tem de orientar-se de outra maneira, na rua e em casa, e tem de aprender novas referências. É um processo muito doloroso porque a maior parte das pessoas cumpre esse processo nos primeiros meses de vida e depois vai crescendo habituada a um determinado número de imagens, em relação às quais adquire uma pele protectora. Para mim, por exemplo, é muito doloroso ir pela rua e ver um cão atropelado ou aperceber-me da degradação dos sem-abrigo. São coisas que não deixam de impressionar qualquer pessoa sensível, mas às quais as pessoas que sempre viram já estão habituadas.

 

A cegueira distancia-a dos problemas que atingem a sociedade?
Não, porque há outras formas de percepção. Só que eu habituei-me a essas formas e adquiri uma pele protectora que me protege das coisas que eu posso perceber. Era ficar completamente vulnerável se de repente começasse a ver. Não tenho ainda defesas em relação a isso e acho que me ia levar muito tempo até resolver esse problema, para além de ter de aprender o mundo todo.

 

O que é que lhe iria ser mais difícil aprender?
Por exemplo, aprender uma segunda vez a ler e a escrever, a compreender as imagens, a ter noção de perspectiva, a compreender o que é que alguns gestos e expressões significam. Depois, acho que ia olhar muito fixamente as pessoas porque ia ter muita curiosidade em relação a tudo e mais alguma coisa e as pessoas iam sentir-se incomodadas. E há outra coisa: sendo cega e havendo possibilidade de ver poderia optar por fazê-lo, mas se eu decidisse ver já não podia voltar atrás.

 

Já tentou algum tratamento para recuperar a visão?
Os meus pais fizeram várias viagens ao estrangeiro em busca de uma solução para o meu problema. Aos cinco anos, numa clínica oftalmológica em Londres, foi-lhes explicado que eu não podia ser operada por uma questão de formação do olho. Eles tiraram daí o sentido e não fizeram mais esforços porque eram inúteis, não havia mais nada a fazer... Mas esperam que a qualquer momento, com os avanços da ciência, isso se torne possível.

 

Acredita que a ciência pode encontrar uma solução para a cegueira?
Acho que isso não depende da minha opinião pessoal, depende mesmo dos avanços que a ciência fizer e eu penso que a clonagem, por exemplo, pode ser um caminho. Como se podem reproduzir organismos inteiros, também se podem reproduzir órgãos e partes específicas de organismos. No meu caso, além dos olhos, tenho problemas com os nervos ópticos. Mesmo que os meus olhos tivessem condições para ver, os meus nervos ópticos não têm condições para transmitir imagens da retina para o cérebro. Mas suponho que, quando se evoluir o suficiente para que se possam produzir tecidos e partes de órgãos, vai ser possível. Acredito mais nessa possibilidade do que em dispositivos técnicos.