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«Saí
do caos... meti-me no diabo»
Numa sala na sede da Associação de Apoio à
Vítima, um cartaz exibe uma frase que se destaca das paredes brancas: "Quem cala
consente. Não se cale." O fenómeno da violência doméstica, que constitui a
maioria dos casos tratados por aquela associação, tem vindo a alcançar maior
visibilidade. Apesar da maioria das vítimas não ir para a frente com um processo
criminal, muitas procuram junto de associações o apoio que não encontraram em mais lado
nenhum. Maria tem 39 anos e durante mais de 21 sofreu em silêncio os maus tratos
infligidos pelo seu cônjuge, de 45 anos.
Oito horas da manhã. Maria é surpreendida por mais
um acto de violência do marido. Desta vez persegue-a com uma faca na mão para a matar.
Os gritos dos filhos no quintal alertam os residentes da zona. Uma das vizinhas
aproxima-se do agressor para a socorrer. Ao tentar tirar-lhe a faca, corta-se num dedo.
Só o sangue o faz parar... Nesse dia a sua filha Alexandra completava 12 anos de idade.
Maria é mais um nome para juntar às estatísticas das vítimas de violência conjugal.
Apesar de ter encaminhado três ou quatro processos em tribunal pelas agressões sofridas,
nunca avançou com uma queixa até ao fim, dadas as ameaças de que era alvo.
"Ele ameaçava-me de morte e chegava a acompanhar-me aos tribunais para eu desistir
dos processos. Tinha que ceder a tudo o que ele queria... Cheguei ao ponto de andar na rua
e ter a sensação de que ele estava sempre ao meu lado. Foram 21 anos de desgosto e de
tortura", conta.
Maria não é o verdadeiro nome desta mulher, que apesar de ter escapado ao ciclo da
violência, ainda continua a temer pela sua vida. Com o corpo marcado por cicatrizes,
nunca conheceu uma vida sem agressões. Vítima de maus tratos por parte da mãe, um
casamento "arranjado", aos 16 anos, surge-lhe como a salvação. Mas em vez de
segurança, só foi encontrar ainda mais violência.
"Saí do caos e meti-me no diabo. Quatro meses depois de estarmos casados o meu
marido começou-me a dar maus tratos", diz apertando tremulamente entre as mãos um
lenço de papel branco.
Uma combinação de agressões e problemas
de saúde
A 14 de Outubro de 1998, Maria é operada a uma
hérnia discal. No dia em que regressa a casa após o internamento, é violada pelo
marido. A costura nas costas faz um "género de buraco para dentro".
"Eu senti uma impressão nas costas e disse à minha filha. Ela levantou-me o penso e
exclamou: «Mãe, eu não te quero assustar mas tu tens uma cova nas costas»",
relembra Maria com lágrimas nos olhos.
É de novo internada e submetida a uma intervenção cirúrgica que a deixa incapacitada
de trabalhar. Contudo, antes de sair do hospital, recebe um telefonema da filha. Alexandra
conta, em pânico, que o pai entrou na casa de banho enquanto ela estava nua na banheira.
"Ela disse que começou logo a gritar. O pai fingiu que ia pôr a roupa suja no
cesto. A sorte foi que o meu filho apareceu. Eu não sei quais eram as intenções
dele", recorda agitando-se nervosamente na cadeira.
Manchas vermelhas começam a aparecer-lhe no pescoço em contraste com a pele branca,
devido à ansiedade. Da rua chegam os sons desconcertantes de sirenes de ambulância.
Os longos anos de humilhações e outros problemas familiares levaram-na a três
esgotamentos nervosos. No espaço de três meses, Maria perde o cunhado e a mãe.
"Eu debati-me com uma situação muito grave. Estava a trabalhar em nove casas como
mulher a dias, lavava três escadas. Tinha que tratar de todos, incluindo o meu pai. As
coisas começaram-se a complicar, o meu marido começou a ficar cada vez mais
violento", conta apertando a mala cinza contra o peito.
Toda esta situação leva-a a tomar duas decisões: internar o marido, a quem é
diagnosticado esquizofrenia paranóica e fugir de casa a 6 de Janeiro de 1999,
aproveitando o internamento do agressor.
Não ter vergonha de dar a cara
Maria interrompe momentaneamente o seu discurso.
Fixa o olhar vazio nos quadros alusivos à mitologia clássica. O som da rua trá-la de
volta à realidade e às suas lembranças.
Hoje diz não se arrepender de ter tomado a iniciativa de sair de casa e deixar tudo para
trás. Mas afirma que lhe dói o facto de tudo o que está dentro daquela casa e a
própria ter sido construído pelas suas próprias mãos".
Ainda assim, deixa um conselho para todas as pessoas que como ela se viram violentadas nos
seus direitos mais básicos.
"Aconselho-as a terem muita coragem. A minha cobardia é que me fez ficar no estado
em que estou. Não tenham vergonha de dar a cara", afirma com um olhar determinado e
convicto.
"Fui o homem e a mulher da casa"
A maioria das vítimas vivem em condições
sócio-económicas precárias, até porque são normalmente elas a suportar as despesas da
casa.
"Ele não contribuía para as despesas. Trabalhava um mês nas obras e descansava
três ou quatro. Cheguei ao ponto de ter que enganar os meus filhos com água morna com
açúcar, porque não tinha comida para lhes dar. Durante 11 anos fui o homem e a mulher
da casa", diz Maria.
De acordo com Helena Guerreiro, psicóloga da APAV, a dependência gera-se mais no campo
emocional do que no económico.
"Normalmente estas vítimas têm um suporte social muito restrito tendo em conta que
há uma táctica típica dos agressores que é votarem a sua companheira ao
isolamento", esclarece a psicóloga.
A falta de apoios exteriores, quer da parte dos familiares, quer das instituições
competentes, é um outro factor que condiciona a libertação destas mulheres. Segundo
Helena Guerreiro, há uma escassez de espaços especificamente destinados a acolher as
vítimas de violência doméstica e os existentes estão lotados.
No Plano Nacional Contra a Violência Doméstica, aprovado pelo Conselho de Ministros a 12
de Maio de 1999, está previsto o desenvolvimento de uma rede de refúgios e o reforço
técnico e financeiro de organizações já existentes. A execução deste Plano dependia
da discriminação das verbas necessárias no Orçamento Geral do Estado para 2000.
Contudo, de acordo com a presidente da Comissão para a Igualdade e Direitos das Mulheres,
Ana Maria Braga da Cruz, "não há realmente um orçamento especial para a execução
do Plano. Há vários itens que vão sendo assumidos por vários departamentos".
Maria sai para a rua e afasta-se por entre os transeuntes que olham as montras. Para trás
deixa todo um passado. Agora encara a vida sem medo e sem vergonha. No seu futuro, só há
espaço para dar uma vida melhor aos seus filhos.

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