Texto nº16 |
Descida de Ishtar ao infra-mundo
Ishtar, a filha da Lua, decidiu ir
à Terra de onde não se regressa, ao reino de Ereshkigal.
À casa escura, à casa de Irkalla,
à casa onde quem tenha entrado jamais tornou a sair.
Ao caminho por onde não existe retorno.
À casa onde os que entram são privados de luz,
Onde o pó e o barro são o seu alimento.
Onde não vêem luz e residem nas trevas.
Onde estão vestidos como pássaros, com asas como roupa.
E onde sobre a porta e sobre o ferrolho se espalha o pó.
Quando Ishtar chegou à porta da Terra de onde não se regressa,
disse ao guardião:
«Ó guardião, abre a tua porta.
Abre a tua porta para que eu possa entrar!
Se não abres a porta para que eu possa entrar,
eu esmagarei a porta, estilhaçarei o ferrolho,
destruirei o umbral, deslocarei as portas,
incitarei os mortos a comer os vivos,
para que o número dos defuntos exceda o dos vivos».
O guardião abriu a sua boca para falar,
dizendo à glorificada Ishtar:
«Pare, minha senhora, não a derrubes!
Irei anunciar o teu nome à Rainha Ereshkigal.»
O guardião entrou e disse a Ereshkigal:
«A tua irmã Ishtar espera à porta,
aquela que mantém os grandes festivais,
que desperta as profundezas diante de Ea, o rei.»
Quando Ereshkigal escutou isto, a sua face empalideceu como um tamarisco
cortado e os seus lábios escureceram como uma cana-kuninu partida.
«Que trouxe o seu coração até mim? O que a impeliu até aqui?
Devo beber água com os Anunnaki?
Devo comer barro como pão e beber água lamacenta como cerveja?
Devo lamentar os homens que deixaram para trás as suas mulheres?
Devo lamentar as donzelas que foram arrebatadas dos braços dos seus amantes?
Ou devo chorar o pequeno que se foi antes do tempo?
Vai, guardião, abre-lhe a porta,
trata-a de acordo com os antigos usos.»
O guardião foi-lhe abrir a porta:
Entre, minha senhora. Que Cutha rejubile por tua causa,
que o palácio da Terra de onde não se regressa se agrade com a tua presença.»
Quando ela atravessou a primeira porta,
ele despojou-a da grande coroa que se encontrava sobre a sua cabeça.
«Ó guardião, porque me retiraste a grande coroa?»
«Entre, minha senhora. Estes são os costumes da Senhora do mundo
subterrâneo.»
Quando ela atravessou a segunda porta,
ele tirou-lhe os brincos das orelhas.
«Ó guardião, porque tiraste os brincos das minhas orelhas?»
«Entre, minha senhora. Estes são os costumes da Senhora do mundo
subterrâneo.»
Quando ela atravessou a terceira porta,
ele arrebatou-lhe os colares que tinha à volta do pescoço.
«Ó guardião, porque me arrebataste os colares que tinha à volta do pescoço?»
«Entre, minha senhora. Estes são os costumes da Senhora do mundo
subterrâneo.»
Quando ela atravessou a quarta porta,
ele tirou-lhe os ornamentos que tinha sobre o seu peito.
«Ó guardião, porque tiraste os ornamentos que tinha sobre o meu peito?»
«Entre, minha senhora. Estes são os costumes da Senhora do mundo
subterrâneo.»
Quando ela atravessou a quinta porta,
ele tirou-lhe o cinto de pedrarias das suas ancas.
«Ó guardião, porque me arrebataste o cinto de pedrarias das minhas ancas?»
«Entre, minha senhora. Estes são os costumes da Senhora do mundo
subterrâneo.»
Quando ela atravessou a sexta porta,
ele tirou-lhe as pulseiras das mãos e dos pés.
«Ó guardião, porque tiraste as pulseiras das minhas mãos e dos meus pés?»
«Entre, minha senhora. Estes são os costumes da Senhora do mundo
subterrâneo.»
Quando ela atravessou a sétima porta,
ele tirou-lhe o vestido que envolvia o seu corpo.
«Ó guardião, porque tiraste o vestido que envolvia o meu corpo?»
«Entre, minha senhora. Estes são os costumes da Senhora do mundo
subterrâneo.»
Assim que Ishtar desceu à Terra de onde não se regressa,
Ereshkigal vislumbrou-a e bradou.
Ishtar, irreflectida, voou para ela.
Ereshkigal abriu a sua boca para falar:
«Vai, Namtar, prende-a no meu palácio!
Liberta contra ela os sessenta infortúnios:
Infortúnio dos olhos contra os seus olhos,
Infortúnio dos flancos contra os seus flancos,
Infortúnio do coração contra o seu coração,
Infortúnio dos pés contra os seus pés,
Infortúnio da cabeça contra a sua cabeça.
Contra todas as suas partes, contra todo o seu corpo!»
Depois da Senhora Ishtar ter descido às profundezas,
o touro deixou de cobrir a vaca, o burro não fecunda a burra,
na rua, o homem não fecunda a donzela.
O homem permanece no seu próprio quarto, a donzela fica ao seu lado.
O semblante de Papsukkal, o vizir dos grandes deuses,
caiu, a sua face obscureceu.
Estava vestido de luto e usava longo cabelo.
Papsukkal foi perante Ea, o rei:
«Ishtar desceu às profundezas e não regressou.
Desde que Ishtar desceu à Terra de onde não se regressa,
o touro deixou de cobrir a vaca, o burro não fecunda a burra,
Na rua, o homem não fecunda a donzela.
O homem permanece no seu próprio quarto, a donzela fica ao seu lado.»
Ea, no seu sábio coração, concebeu uma imagem
e criou Asushunamir, um eunuco:
«Vai, Asushunamir, dirige-te à porta da Terra de onde não se regressa:
as sete portas da Terra de onde não se regressa estarão abertas para ti.
Ereshkigal contemplar-te-á e ficará feliz com a tua presença.
Quando o seu coração se acalmar e a sua disposição for feliz,
deixa que ela pronuncie o juramento dos grandes deuses.
Depois, ergue a tua cabeça, prestando atenção à bolsa com a água da vida:
«Ore, senhora, deixe que me dêem a bolsa com a água da vida
para que eu possa beber dela.»
Assim que Ereshkigal ouviu isto,
Ela bateu na sua coxa, mordeu o seu dedo:
«Pediste-me algo que não deve ser pedido.
Vem, Asushunamir, esconjurar-te-ei com uma maldição poderosa!
A comida das valetas da cidade será o teu alimento,
os esgotos da cidade dar-te-ão de beber.
As soleiras das portas serão a tua habitação
o ébrio e o sequioso quebrarão os teus dentes!»
Ereshkigal abriu a sua boca para falar,
dizendo estas palavras a Namtar, o seu vizir:
«Vai, Namtar, bate à porta em Egalgina,
ornamenta as soleiras das portas com coral,
traz para fora os Anunnaki, senta-os em tronos de ouro,
asperge Ishtar com a água da vida e leva-a da minha presença!»
Namtar foi e bateu à porta em Egalgina,
ornamentou as soleiras das portas com coral,
trouxe para fora os Anunnaki, sentou-os em tronos de ouro,
aspergiu Ishtar com a água da vida e levou-a da sua presença!»
Quando a fez atravessar a primeira porta,
devolveu-lhe o vestido que envolvia o seu corpo.
Quando a fez atravessar a segunda porta,
devolveu-lhe as pulseiras das suas mãos e dos seus pés.
Quando a fez atravessar a terceira porta,
devolveu-lhe o cinto de pedrarias das suas ancas.
Quando a fez atravessar a quarta porta,
devolveu-lhe os ornamentos que tinha sobre o seu peito.
Quando a fez atravessar a quinta porta,
devolveu-lhe os colares que tinha à volta do pescoço.
Quando a fez atravessar a sexta porta,
devolveu-lhe os brincos das suas orelhas.
Quando a fez atravessar a sétima porta,
devolveu-lhe a grande coroa que se encontrava sobre a sua cabeça.
«Se ela não te der o preço do seu resgate, trá-la de volta.
Quanto a Tammuz, o amante da sua juventude,
Lava-o com água pura, unge-o com óleo doce:
veste-o com um fato vermelho,
que ele toque numa flauta de lápis.
Que os cortesãos mudem a sua disposição.»
Quando Belili estava a enfiar as suas jóias,
e o seu regaço estava cheio de pedrarias,
ao escutar a voz do seu irmão, bateu com as jóias em...
E as pedrarias encheram...
«O meu único irmão, não me faças mal!
No dia em que Tammuz subiu até mim,
Quando veio até mim com a flauta de lápis e o anel de cornalina,
quando com ele vieram até mim homens e mulheres em pranto,
que os mortos se levantem e cheirem o incenso.»
(tradução livre)