Armas e crime

       "Homicida-tipo"

O crime de homicídio é um fenómeno complexo, irredutível a uma explicação simplista. Apesar de todos os esforços da criminologia moderna para encontrar um “homicida-tipo”, típico e universal, a verdade é que, até hoje, nenhum investigador conseguiu encontrar uma “espécie”  de homens com maior propensão para o homicídio do que as outras. Actualmente, há uma forte  tendência na ciência para a explicação genética da criminalidade, mas continua por provar que o comportamento homicida seja determinado, essencialmente, por factores biológicos e antropológicos inatos aos  sujeitos.

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 Um fenómeno social

O  homicídio é um fenómeno que é determinado por muitos e variados factores de ordem económica, social e cultural, isto é, de natureza exterior ao sujeito, e é um dos tipos de crime onde a ocasionalidade  e os factores aleatórios têm um peso maior. “O homicídio é o crime que todos nós somos capazes de cometer”, defende António Teixeira, sub-inspecrtor da secção de homicídios da Polícia Judiciária (PJ).  "No homicídio, o crime dá-se, muitas vezes,  por circunstâncias do arco da velha. Você acorda mal disposto, e, numa discussão no meio do trânsito, há um tipo que o chateia. Você tem uma arma no bolso... dá-lhe um tiro e acabou-se". Paquete de Oliveira, professor do ISCTE especialista em criminalidade, defende mesmo que, "sob o ponto de vista sociológico, o aforismo popular «a ocasião faz o ladrão» é o mais adequado para se entender a natureza deste tipo de crimes".

  homicídios típicos

Embora não seja possível traçar o perfil de um homicida-tipo, existem estatísticas, investigações e registos policiais que permitem identificar alguns homicídios muito típicos, com características sociais e humanas próprias. Em Portugal, há dois tipos de homicídio tradicionais, onde o recurso às armas de fogo é frequente: o homicídio passional e o homicídio "rural",  relacionado, normalmente, com as questiúculas sobre a propriedade da terra.

 

 Homicídio passional 

O homicídio passional é um crime com tradição em Portugal, mas já não tem o peso simbólico e social que tinha outrora, há 50 ou há 100 anos atrás . Para o sub-inspector António Teixeira, da secção de homicídios da PJ, este crime baixou bastante, situando-se actualmente entre os 12 e os 18 por cento, consoante os anos, do número anual de homicídios averiguados pelas autoridades policiais. Para Paquete de Oliveira,  criminólogo do ISCTE, há duas razões fundamentais por trás desta descida. A primeira, tem a ver com uma mudança da mentalidade, que evoluiu no sentido do enfraquecimento dos preconceitos e das tradições que enquadravam o casamento e a monogamia em Portugal. A segunda razão, tem a ver com a desertificação  da província, cenário tradicional deste tipo de homicídios,  onde toda a gente conhecia toda a gente  e onde a exigência de “limpar a honra”,  perante um caso de  adultério ou de calúnia, era e é, apesar de tudo, muito mais forte do que na cidade.

 Homicídio rural 

Há outra forma de homicídio típica em Portugal, que está muito ligada à tradição do uso e porte de armas de caça e aos desentendimentos sobre a propriedade ou sobre o aproveitamento dos recursos agrícolas - é o homicídio rural. Tal como o homicídio passional, este tipo de crime tem uma ligação profunda à província, onde o solo está muito estratificado,  subdividido em pequenas parcelas, e onde a população tem um sentido da propriedade da terra muito arreigado.  Para Paquete de Oliveira, a forma microscópica como o solo agrícola está repartido em Portugal, em milhares e milhares de pequenas culturas de subsistência, é um factor potenciador de conflitos entre a população do campo, de atritos que podem conduzir à utilização criminosa das caçadeiras que muitos destes homens e mulheres têm em casa. Actualmente, este tipo de homicídio já não é tão preocupante como era dantes, antes da debandada da população do campo para as cidades e para o estrangeiro. Mesmo assim, não é raro termos notícia de um homem do campo que matou outro, num dia em que tinha bebido uns copos a mais, por causa de uma coisa  aparentemente insignificante.

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  homicídios ligados ao  crime

  Em Portugal, não existe uma tradição de homicídios ligados a outros crimes, como nos EUA, onde este tipo de homicídio remonta, pelo menos, à década de 30, ao tempo da Lei Seca, dos gangsters e de Al Capone. Apesar de tudo, e embora  todas as diferenças entre os EUA e Portugal,  com o "boom" da heroina em Lisboa, no  final dos anos 80, o homicídio relacionado com outros tipos de criminalidade começou a afirmar-se  na  sociedade portuguesa,  ligado, essencialmente, ao roubo, ao tráfico e ao consumo de drogas, que têm vindo a  crescer nos últimos anos . Para o sub-inspector António Teixeira, da secção de homicídios da PJ,  o homicídio relacionado com este tipo de crimes é o que mais contribui, actualmente,  para a mortalidade por homicídio em Portugal.

 

 O homicídio ligado ao roubo e ao tráfico de droga 

O homicídio relacionado com o roubo e com o tráfico de droga é um crime típico da cidade. É no espaço urbano que operam a grande maioria dos indivíduos e dos gangs que fazem do furto e da venda de estupefacientes o seu modo de vida. Em Portugal, a capital do crime é Lisboa, que tem um nível de criminalidade muito superior ao de qualquer outra cidade do país. É aqui que há mais assaltos, mais tráfico e consumo de drogas e  onde o número de homicídios é maior.  Segundo as estatísticas do Ministério da Saúde, entre 1993 e 1998, deram entrada nos hospitais portugueses 861 vítimas de homicídio:  442 eram da região da Grande Lisboa. Na Região Norte, a segunda região mais afectada por este tipo de crime, as autoridades sanitárias registaram 131 vítimas de homicídio, um terço dos casos contabilizados na região da Grande Lisboa.

 Uma pergunta difícil 

Face a uma  tão grande incidência da criminalidade e do homicídio na Região de Lisboa, procuramos saber, não o porquê desta concentração, uma vez que isso é considerado "normal" nas grandes cidades, mas sim, se era possível ou não identificar-se um grupo, um sector da sociedade lisboeta onde o homicídio com armas de fogo fosse mais frequente. Fizemos a pergunta a uma pessoa que lida diariamente com este tipo de crime, o sub-inspector António Teixeira, da secção de homicídios da PJ de Lisboa, e depois tentámos saber mais sobre o assunto com o sociólogo Paquete de Oliveira, especialista em criminalidade do ISCTE.

 

Grupos de risco

Para o sub-inspector António Teixeira, a discussão sobre os grupos sociais onde a criminalidade com armas de fogo é maior, é uma temática onde "corremos o risco de nos chamarem racistas". "Eu poder-lhe-ia responder para ir ver a população prisional do Linhó, que é quase toda de etnia africana",  diz, respondendo, assim, indirectamente, à pergunta difícil que lhe fizemos. "Claro que este facto tem muitas explicações, e não pode ser tratado de forma simplista; trata-se de classes marginalizadas da sociedade, que caem mais facilmente na esfera do crime", acrescenta o sub-inspector, para sublinhar a complexidade social do problema. Para António Teixeira, a incidência do homicídio ligado a outros crimes na população de etnia africana, deve-se, em grande medida, ao facto de o tráfico de estupefacientes estar hoje "muito controlado",  por indivíduos dos PALOP. Além dos africanos, o oficial da polícia  considera que a posse ilegal de armas de fogo também está muito enraizada entre os indivíduos de etnia cigana. Segundo o subinspector da secção de homicídios, "é raro encontrarmos um cigano que não tenha uma caçadeira ou outra arma".

 

   Um problema cultural

Para o sociólogo Paquete de Oliveira, esta incidência dos homicídios ligados ao narcotráfico e ao crime na população de origem africana, tem razões económicas e sociais profundas, como a falta de habitação, de escolaridade ou de condições mínimas de higiene de que carece esta população. Mas este facto, na sua opinião, também tem uma vertente cultural muito forte. "Na cultura africana, o valor da vida é menor do que o valor que lhe atribuímos na cultura europeia", explica o sociólogo. Além disso, defende, é importante não esquecermos a desadequação cultural das pessoas de origem africana face à cultura ocidental judaico-cristã. Quanto às armas e aos homicídios propriamente ditos, Paquete de Oliveira também vislumbra uma razão cultural forte, para além da mera contabilidade dos casos. "Os imigrantes das ex-colónias vêm de uma sociedade onde a cultura da posse e uso de armas de fogo estava e está muito presente, e muitos deles não conseguem romper com estes costumes".

 

    Crianças, mas pouco

 

O homicídio ligado à criminalidade preocupa cada vez mais as autoridades policiais,  não apenas porque é o tipo de homicídio mais frequente, mas porque encerra uma questão grave para a polícia: este é o tipo de homicídio onde as idades das vítimas e dos homicidas são mais baixas. Há cada vez  mais  adolescentes  envolvidos em assaltos, no tráfico de droga e em crimes de sangue.  Para António Teixeira, o homicídio juvenil é particularmente preocupante devido à inconsciência que lhe está associada. “Hoje em dia um miúdo de 15 anos não tem a mesma mentalidade de um miúdo da mesma idade de há 20 ou 30 anos atrás. Tem outra noção da realidade, tem outra noção das coisas, vive noutro contexto e pode ser muito mais perigoso do que um adulto. Quando está perante a situação de matar alguém, não pensa tanto no que está a fazer nem nas consequências sociais e policiais dos seus actos. O adulto antecipa e racionaliza as implicações dos seus actos ; o miúdo dispara e acabou-se”. 

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misteriosos

Homicídios misteriosOS

Existe um quarto tipo de homicídio importante em Portugal, que é o das mortes por homicídio em que as autoridades policiais não conseguem identificar um  suspeito pela autoria do crime, ou em que não conseguem determinar qual foi a "arma" ou o meio com que o crime foi cometido. Nos últimos anos, as autoridades portuguesas registaram algumas centenas de homicídios deste tipo, tudo crimes misteriosos e sem castigo, que acabam  reduzidos à condição  de um número esquecido na chamada "cifra negra" do homicídio.

 

Segundo as estatísticas do Ministério da Justiça, entre 1995 e 1998, as autoridades policiais portuguesas  registaram 1520 casos de homicídio voluntário consumado, mas só em 1054 casos conseguiram identificar um suspeito pelo crime. A autoria de 466 homicídios ficou por determinar. Ou seja, 31 por cento dos homicídios registados durante este quatro anos acabaram na chamada "cifra negra", que é onde são contabilizados estes casos  misteriosos e sem solução. 

A "cifra negra" do homicídio  tem outra faceta importante.  Nos 1520 homicídios registados entre 1995 e 1998, as autoridades policiais também não conseguiram apurar qual foi a arma, ou o meio com que 644 mortes foram cometidas. De acordo com as estatísticas do Ministério da Justiça, 42 por cento destes homicídios  foram cometidos por armas ou meios "desconhecidos".

Os homicídios misteriosos têm um grande peso na mortalidade por homicídio em Portugal, como o provam as estatísticas oficiais. Porém, as estatísticas nada dizem  sobre o  lado obscuro e inexplicado destes crimes sem  rosto nem marca do crime. Quem são os autores destes homicídios? Como é que em tantos deles não existem marcas  dos meios utilizados pelo homicida? A "cifra negra" do homicídio é uma matéria que suscita perguntas, afinal, trate-se de um terço do  total de homicídios registados em Portugal nos últimos anos. Estas mortes misteriosas, porém, constituem um "buraco negro" estatístico, como defende o sociólogo Paquete de Oliveira, para o qual não existe uma explicação  nem respostas concretas e definitivas.

O conhecimento que existe nesta matéria não é um conhecimento exacto, matemático, mas sim uma sabedoria policial, fruto de uma relação quotidiana com estes  homicídios estranhos. Segundo Paquete de Oliveira, os homicídios da "cifra negra" correspondem, em parte, aos casos de homicídio entre familiares, como o envenenamento de idosos e de outros parentes devido a interesses materiais, ou simplesmente para se “livrarem dos velhos” . Paquete de Oliveira conta que "quando andava na Escola da Polícia Judiciária, revelaram-me um factor que me deixou arrepiado. Um dos directores do Instituto de Criminologia dizia que às segundas e terças feiras era muito comum chegarem-lhe cadáveres dos hospitais para serem analisados, que tinham morrido, nalguns casos, de envenenamento pelos familiares, devido a questões de heranças, ou então, devido à rejeição do seu regresso a casa. Isto é, é uma crueldade. Isto foi-me dito de viva voz por um indivíduo que lidava com estas coisas."    

Na opinião do sociólogo português, os homicídios da “cifra negra”  correspondem  a toda uma criminalidade encapotada, constituída por crimes de homicídio mais discretos, dissimulados e subtis, que são muito difíceis de provar, mas que a polícia e os criminólogos presumem serem praticados, em muitos casos, por mulheres. A  "mão feminina" está por detrás  deste tipo de homicídio, da mesma maneira que a mulher portuguesa está na sociedade patriarcal: de uma forma discreta e subserviente, mas com um enorme poder de acção de "segundo grau", com uma capacidade de agir camuflada e refinada por séculos de subjugação ao poder  masculino e às exigências sociais que lhe foram impostas na sociedade ocidental. Quer se acredite ou não nesta capacidade que as mulheres têm para cometer crimes com "requintes de malvadez", a verdade é que todos estes homicídios misteriosos introduzem um factor crucial que inviabiliza qualquer tentativa de quantificação maniqueísta deste fenómeno multifacetado e multidisciplinar que é o do indivíduo tirar a vida ao seu semelhante.

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