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"ÀS
ARMAS! ÀS ARMAS!" |
Nos
Estados Unidos morrem 11 cianças por dia vítimas de armas de fogo ligeiras. No pais dos cowboys,
o uso e porte civil deste tipo de armamento está consagrado na Constituição. Possuir
uma espingarda ou um revólver é quase tão corriqueiro como ter uma carro, e está tão
massificado como a televisão e o cinema, onde há armas para todos os gostos, desde
"Os canhões de Navarone" até ao "Natural Born killers". O grande
problema é que, o facto de qualquer um poder andar armado, multiplicado por 270 milhões
de habitantes, tornou os EUA o "teatro da crueldade" em matéria de crimes
e acidentes com armas de fogo ligeiras. E em Portugal?, a preocupação crescente com a
insegurança e com a violência armada justifica-se ou é um falso alarme empolado pelos
media? Afinal como é que estamos e quem é que somos em termos da violência, dos usos e
dos costumes deste tipo de armamento? |
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Um arsenal nas mãos da sociedade
civil portuguesa
Portugal, ao contrário do que se possa pensar, não é um
país de brandos costumes no que diz respeito ao uso e ao abuso de armas de
fogo ligeiras. Há centenas de milhares de portugueses que têm espingardas e
pistolas em casa e muitos deles andam armados diariamente. Uns legalmente outros não. O
número de armas de fogo ligeiras registadas pela PSP nos últimos anos é surpreendente,
mas esclarecedor desta realidade. De Janeiro de 1993 a Dezembro de 1999, a secção de
Armas e Explosivos da Polícia de Segurança Pública registou 647 998 armas de fogo
ligeiras para uso civil, sendo que 95 465 foram armas de defesa, como pistolas e
revólveres, e 552 533 foram armas de caça, de precisão e de recreio. O que significa
cerca de 100 000 armas registadas todos os anos. Este número surpreendente diz
respeito apenas ao universo das armas de fogo que são registadas e legalizadas conforme
manda a lei. Em síntese, no que diz à posse legal de armas de fogo ligeiras
em Portugal, os números da PSP são reveladores da existência de um verdadeiro
arsenal nas mãos da sociedade portuguesa. |
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É demasiado fácil obter uma arma
A dimensão deste fenómeno não se resume aos números oficiais.
Paralelamente à posse legal de armas, existe um vasto número de indivíduos que
têm e andam com armas de fogo que não estão registadas nem foram adquiridas de modo
legal. Segundo António Teixeira, sub-inspector da secção de homicídios da Polícia
Judiciária (PJ), em Portugal não existe um tráfico de armas organizado. "Cada
indivíduo ou cada gang tem a sua forma de adquirir armas, que tanto podem aparecer
na Feira da Ladra como na Feira do Relógio, vendidas ocasionalmente por indivíduos
sem ligação às redes de tráfico de armas internacionais". Apesar disso,
António Teixeira considera que é muito fácil adquirir uma arma de fogo ligeira e que o
rigor da legislação em vigor sobre uso e porte de
armas está muito desfasado da realidade social. Para ter uma arma de
defesa, actualmente", diz, "basta ter o cadastro limpo e dizer que
precisa dela ou porque anda com muito dinheiro, ou porque vive no campo, numa zona
isolada, ou porque vive numa zona degradada. |
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O caso da arma por trás do
balcão
Este contraste entre a letra da lei e o uso e o porte efectivos
das armas de fogo ligeiras está bem presente na vida quotidiana de um empregado de mesa
de uma conhecida cervejaria de Lisboa. Pedro (nome fictício por razões de
segurança) tem 25 anos e é bacharel. Começou a trabalhar na hotelaria à cerca de 2
anos, onde ganha o dobro do que ganharia se
estivesse a trabalhar na área em que estudou. A partir de então, conta, comecei
a dar-me com pessoas de um outro nível cultural, vindas de todo o país, e apercebi-me
que neste meio muita gente andava armada, sobretudo homens entre os 30 e os 40 anos .
Segundo a descrição de Pedro, a grande maioria destes indivíduos são pessoas que
vieram da província trabalhar para Lisboa e que vivem na periferia, muitos deles em
lugares problemáticos e violentos como o Vale da Amoreira. A maioria
destes indivíduos não anda com uma arma qualquer", explica o empregado da
cervejaria, "alguns têm Walters (pistolas de guerra de 9mm), outros têm
revólveres Smith & West e outros têm
Berettas (prestigiada marca de armas ligeiras italiana), etc. É tudo
armas de marca. Tive um colega que me quis vender um revólver 6,35mm por 35 contos, e
arranjava-me as munições que eu quisesse. As pessoas não calculam a facilidade com que
se pode comprar uma arma. |
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"A arma do povo"
A facilidade de obtenção de armas de defesa é apenas um dos
lados do facilitismo que existe em Portugal em matéria de obtenção de armas de fogo
ligeiras. O outro lado deste problema, e talvez o mais importante, é o da facilidade que existe na obtenção de
armas de caça. Apesar da legislação em vigor ser exigente no que concerne à
atribuição de licenças de caça, a verdade é que qualquer indivíduo maior de 18 anos,
sem cadastro, consegue facilmente comprar uma caçadeira e obter uma licença para a usar.
Segundo António Teixeira, da PJ, "há por ai caçadeiras em tudo o que é
lado". As centenas de milhares de caçadeiras importadas para Portugal e
registadas pela polícia nos últimos anos são bem indicativas, não só da grandeza do
arsenal de armas cinegéticas que a sociedade civil tem à mão, mas também da facilidade
com que é possível obter as licenças para o seu uso e porte. A caçadeira é uma espécie de "arma do
povo". Na opinião do sociólogo Paquete de Oliveira, especialista em criminalidade,
o elevado número de caçadeiras existente em Portugal indicia a existência de uma
cultura da posse de armas muito enraizada na sociedade. Eu diria que a caça é
como que o loisir da população rural. A questiúncula que levantou no país a
questão das novas regras da caça fez vir ao de cima uma coisa que era desconhecida: o
número de praticantes de caça é muito maior do que se pensava. |
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As armas e os cidadãos assassinados
A caçadeira é uma arma barata e bem tolerada socialmente, e é
particularmente mortífera quando disparada contra alguém. Segundo o sub-inspector
António Teixeira, a caçadeira é a arma mais utilizada nos homicídios passionais e nos
homicídios que têm lugar nas zonas rurais, relacionados com diferendos sobre a
propriedade e a partilha da terra ou sobre o aproveitamento dos recursos agrícolas. No
espaço urbano a caçadeira é mais difícil de transportar. O seu uso criminoso está
mais relacionado com o roubo e com os assaltos a bombas de gasolina, onde o crime é
praticado, muitas vezes, sob a ameaça de uma espingarda de caça com os canos
serrados. |
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Mudam-se os tempos, mudam-se as armas e
a criminalidade
As armas e os crimes típicos da cidade são diferentes dos das
zonas rurais e são muito mais numerosos também. Em Lisboa, a capital do crime em
Portugal, cenário de mais de metade dos homicídios registados nos últimos anos, as armas de fogo mais utilizadas na
criminalidade são armas transformadas, as chamadas rec, que são pistolas
concebidas para dispararem munições de gás, mas que
os gangs conseguem adaptar de modo a dispararem 3 ou 4 munições 6,35mm, o
suficiente para matar alguém. Segundo o sub-inspector António Teixeira, enquanto que os homicídios passionais e os crimes
de sangue relacionados com desentendimentos rurais baixaram, fruto da desertificação das
regiões do interior, os homicídios relacionados com o roubo e o tráfico de droga,
crimes típicos da cidade, cresceram de uma forma sem precedentes, de tal modo que já
são a principal causa dos óbitos por homicídio em Portugal. Este tipo de criminalidade
e de uso ilícito de armas é recente mas é particularmente preocupante para as
autoridades policiais, não apenas porque representa a fatia mais significativa dos
números anuais do crime, mas também porque encerra um problema social grave a médio
prazo: é neste tipo de criminalidade que a idade dos infractores é mais baixa. |
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